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Era uma vez... (by Alexandre Sebert)



Era uma vez, no coração da Alemanha, lindos príncipes e belas princesas; ditatoriais reis e rainhas e malvadas bruxas e monstros; animais falantes e florestas amaldiçoadas. Histórias reais ou fantasiadas que animavam as pessoas à volta da fogueira ou que assustavam criancinhas. Era uma vez histórias passadas de boca em boca através dos séculos e do fascínio que causavam. Histórias macabras resultantes de acontecimentos reais ou da criatividade do povo. Histórias que se foram perdendo ao longo do tempo, desintegrando-se em migalhas… mas que os irmãos Grimm conseguiram reunir e fermentar com a sua originalidade missionária. Se as histórias orais medievais ainda hoje nos invadem, a esses dois irmãos devemos tal graça, consagrando assim os contos de fadas, contos que por sua vez não contêm fadas algumas, mas que nos dias de hoje nos soam surreais, algo para além da realidade mundana.

Os contos de fadas são algo que todos nós nos lembramos devido aos filmes da Disney, adaptações suaves e coloridas que encobrem o fundo sangrento nas suas raízes, que por sua vez psicanalistas entraram na moda de escavar e associar conotações sexuais onde eu pessoalmente acho que não existem. Todos nós reconhecemos nomes como Capuchinho vermelho, Cinderela, Branca de Neve, Hansel e Gretel, Rumpelstiltskin, Maléfica, entre muitos outros. Sabemos as suas histórias manipuladas pelos livros e pela televisão, mas não conhecemos a génesis e a profundidade da relíquia histórica que nos passa pelas mãos como areia. Falta-nos o amor, o medo, a ânsia, a angústia, a felicidade e a empatia por essas histórias.

Estando a ler uma obra que reúne todas as publicações literárias dos irmãos Grimm, começo a compreender como são mágicos e profundos os contos de fadas. Estes autores presentearam-nos com uma incomparável relíquia histórica desde o momento em que decidiram investigar, investir e armazenar o máximo de contos populares possíveis. Mais do que simples contos infantis, que de infantis e inocentes não têm absolutamente nada, os seus contos transportam-nos para uma outra realidade, um novo espaço histórico, um novo estilo de vida e novos costumes que se foram dissipando ao longo dos séculos.

Os seus contos de fadas, originalmente crus, macabros, sombrios e verosímeis em certa parte, são o meu consolo do momento e é uma tristeza aperceber-me que as nossas sociedades modernas fizeram questão de deixar estes contos folclóricos, populares e culturais caírem em desuso. Estas histórias merecem servir como base de uma imaginação fértil e pensamento mágico de qualquer criança.

Visto isto, transcrevo um trecho de uma carta dos próprios Grimm em 1819 sobre esta problemática:

“(…) Foi o que nos ocorreu ao percebermos que já não sobrava nada do tanto que outrora florescera. Perdera-se quase por completo a própria memória de todas estas coisas, a não ser umas quantas canções populares, alguns livros, lendas e estes inocentes contos domésticos. Os lugares junto ao fogão, à lareira da cozinha, às escadas do sótão, os feriados ainda celebrados, as pastagens e as florestas solitárias e, acima de tudo, a fantasia genuína foram as sebes que as protegeram e transmitiram de geração em geração.

Talvez fosse mesmo altura de compilar estes contos, visto ser cada vez mais raro quem os preserve. É certo que quem os ainda conhece, conhece muita coisa, pois enquanto os homens passam, os contos ficam. Mas cada vez mais se está a perder o hábito de os contar, da mesma forma que os lugares acolhedores das casas e dos jardins que passavam de avô para neto estão a ceder à permanente mudança de um esplendor vazio semelhante ao sorriso que acompanha estes contos – um sorriso que parece sofisticado, mas vale pouco.

Onde ainda existem, estão tão vivos que ninguém se pergunta se são bons ou maus, poéticos ou, para gente inteligente, de mau gosto. As pessoas conhecem-nos e apreciam-nos porque os ouviram contar de uma certa maneira e gostam deles sem razão particular”.


Pois bem, estes irmãos estão corretos, principalmente quando profetizam “os homens passam, os contos ficam”. Após uma longa investigação, nutrindo um prazer descomunal pelos ancestrais contos de fadas, apercebi-me que estes tiveram origem na Idade Média, sendo eles espelho da realidade da época, transmitindo os valores e temores da altura, bem como incutindo os seus desejos e aspirações, pois a vontade de encontrar o nosso amor não é algo inexistente nos dias atuais, porém os arquétipos de “princesa” e “príncipe” talvez sejam o símbolo expoente de uma narrativa passional que os nossos antepassados conseguiram encontrar para utilizar na narração das histórias folclóricas sem terem de dar explicações acerca dos protagonistas, tal como as suas identidades. O mesmo processo pode ter ocorrido na denominação de “bruxa”, um nome tão invocado medievalmente como “puta” nos dias de hoje, associando-o desta forma a todas aquelas pessoas quotidianas que nos corroem ou impedem de viver a nossa vida saudavelmente.

E se por um lado, histórias de amor nos transmitem um fenómeno natural no ser humano que é a paixão, histórias portadoras de lobos maus, ogres, dragões, bruxas e duendes travessos nos transmitem outro fenómeno natural no ser humano: o medo. E se hoje os vilões são fantasmas, zombies ou palhaços assassinos, as anteriormente criaturas fantásticas referidas espelham o terror medieval, tendo sido elas inspiradas em pessoas reais da altura, na minha opinião, pois, por mais que um conto seja fictício, este só é bom quando camufla um fundo verídico.




Eu sempre digo e repito: pessoas maníacas, perigosas e sombrias existem e sempre existiram, tal como sempre existirão e se existem doentes capazes de abusar sexualmente de crianças ou de copular com mortos, bem como maníacos ocultistas que desmembram pessoas e as cozinham, para além de raptores e assassinos coleccionadores de partes dos corpos das suas vítimas, porque razão continuamos a desacreditar nos pérfidos vilões dos contos de fadas?!

Talvez seja a nossa intrínseca necessidade de acreditarmos na bondade humana que nos impede de chocar com a realidade mórbida que nos rodeia. Preferimos contar a história de Hansel e Gretel como uma mera historinha sem pensarmos nas verdadeiras crianças abandonadas pelos seus pais, antigamente em florestas e hoje em dia nas ruas. Preferimos contar a história da Capuchinho Vermelho desassociando a figura do lobo mau dos pedófilos que abusam dos nossos filhos e filhas, irmãos, primas ou colegas. Optamos por relembrar Rumplestiltskin como um simples duende travesso que quer cozinhar um bebé distanciados da africana realidade, na qual ignorantes feiticeiros encomendam a morte de albinos para os seus hediondos e inúteis feitiços. São-nos indiferentes as princesas, rainhas, camponesas e bruxas mortas nos contos de fadas, pois narramos sem questionarmos a sua existência; tal como a existência das centenas e milhares de mulheres que são assassinadas ao redor do globo, seja por uma posição indefesa ou por punição abusiva. Talvez os vilões dos contos de fadas sejam reflexo de todos os vilões da atualidade que atuam de fato e gravata, sorrindo livremente ao nosso redor.

Talvez não haja bruxas, mas sim mulheres portadoras de psicopatologias, assassinas como a Madrasta Má da Branca de Neve, ou até mesmo mulheres que boicotam os sonhos das filhas ou as escravizam superiormente, tal como a madrasta da Cinderela. Talvez não haja ogres, mas sim homens ignorantes que se matam com violência e talvez os duendes travessos espelhem todos aqueles que são invejosos e tentam burlar ou enganar aqueles que só querem ajudar. Talvez não haja um Flautista de Hamelin, mas sim manipuladores capazes de atrair multidões e as moldar para os seus próprios interesses. E talvez não haja dragões a guardar tesouros, mas sim políticos tiranos que acumulam as riquezas só para eles próprios, tal como o fogo dos dragões que queimam florestas seja uma metáfora que represente os vingativos e degenerados incendiários.

Eu poderia citar uma panóplia infindável de vilões criminosos das fábulas, lendas e contos de fadas, associando-os a exemplos científicos atuais, mas tudo o que pretendo é fundamentar a minha crença na veracidade folclórica, explicando que vilões provavelmente nada mais são do que pessoas reais e que a preservação dos contos infantis e domésticos dos Irmãos Grimm seja uma relíquia histórica incomparável e inestimável. E embora não seja uma literatura sofisticada, apresenta-nos uma cultura ancestral, emergindo com os seus costumes e crenças imersas pela constante evolução da nossa espécie, pois os tempos podem mudar, mas o ser humano é o mesmo, tal como os homens que passam e os contos que ficam.

Talvez florestas amaldiçoadas sejam locais de horror tal como os nazis campos de concentração para os judeus. E talvez o “Era uma vez” possa ter sido em 1968 quando Martin Luther King foi assassinado ou até então em 2005 quando o furacão Katrina dizimou vários americanos. E talvez este último evento seja contado num futuro distante como: “Era uma vez, um monstro gigante que saltou das nuvens e causou terror numa cidade…” Quem sabe?!




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